quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Cultura de Estupro no Mundo Judicial

Casos de estupro e abuso sexual já se tornaram parte do nosso cotidiano. Enquanto a mídia expõe novos casos de violência sexual quase que diariamente, raramente a população tem conhecimento do que acontece a vítima e ao agressor quando o caso é finalmente levado à justiça.

Assim como na sociedade vemos fortemente enraizada a cultura de estupro, também é possível verificar este padrão de comportamento nas decisões judiciais. Esta cultura estando disseminada também na justiça faz com que o tratamento legal dispensado as vítimas de estupro seja frequentemente marcado pela discriminação, pelo uso de estereótipos e pela desigualdade.

Em um estudo de 2002, chamado “Vítimas e Vilãs, Monstros e Desesperados: Como o Discurso Judicial Representa os Participantes de um Crime de Estupro”, faz-se uma análise de como a justiça ainda é injusta quando se trata de crimes de cunho sexual. Apesar de o estudo ter sido realizado com casos britânicos e já ter 10 anos, pode-se verificar que ele é muito pertinente a nossa realidade judicial.

Essa lógica do nosso judiciário baseia-se na separação de homens em duas categorias: os “normais”, incapazes de cometer um estupro, e os “anormais” que merecem ser punidos. Do mesmo modo, separa as mulheres entre aquelas que merecem uma proteção contra os “anormais” e as outras mulheres que, lascivas e vingativas, se aproveitam da existência deste crime horripilante para reivindicar direitos que não lhes cabem.

Como explica a pesquisa, é freqüente encontrarmos as seguintes divisões em relação à vítima no sistema judicial:

A vítima genuína
Entram nessa descrição as vítimas do estupro considerado pela justiça e pela sociedade como “padrão”: agressor desconhecido, vítima dominada fisicamente e que não “contribui” para o ataque e com relação sexual completa.
Também costumam entra nessa categoria as moças virgens (a virgindade é usada como prova incontestável de sua “boa reputação” e contribui para a credibilidade da vítima), senhoras idosas, mulheres que resistiram fisicamente ao ataque e mulheres estupradas por parceiros, mas que expressam o desejo de perdoá-los (como ela perdoou o agressor é considerado que o trauma psicológico e mental deve ser menor, o que geralmente reduz a pena do apelante).

A vítima não-genuína
Entram nessa descrição as vítimas que tenham comportamento considerado “fora da linha” e que podem ter de alguma forma “provocado o ataque”, geralmente qualquer detalhe da vida pessoal da vítima é usado contra ela: se bebe álcool, se vai a bares, se tem uma maior liberdade sexual, se anda a noite sozinha, se não é virgem, tem muitos amigos homens, se já teve muitos empregos, etc. Qualquer comportamento que possa não enquadrar ela como uma “mulher honesta” será apontado como a causa do estupro. Vítimas de parceiros ou ex-parceiros também entram nessa descrição, pois há um pensamento coletivo, de que a existência de uma relação prévia entre agressor e vítima torna o evento menos traumático e muito mais difícil de comprovar. É importante ressaltar, porém que o estupro cometido por um conhecido pode ser mais traumático do que aquele cometido por um estranho, uma vez que provoca na vítima sentimentos de quebra de confiança, culpa e rejeição.
 
É também muito comum encontrarmos as seguintes descrições em relação aos acusados:

Estupradores desconhecidos
São classificados de duas formas: os monstros e criminoso desequilibrado. Ambos são vistos como criminosos, muito perigosos e distintos dos homens “normais”. O monstro age por “pura maldade” e o desequilibrado age por “problemas psiquiátricos ou abuso de drogas”. Essa classificação dos estupradores desconhecidos promove e mantêm a cultura de estupro, pois insinua que os estupros “verdadeiros e sérios”, são cometidos apenas por homens morais ou psicologicamente deficientes, enquanto que homens “normais” não se comportam dessa forma.

Estupradores conhecidos
São os considerados desesperados, que agiram dessa forma não por serem criminosos ou perigosos, mas sim por uma mistura de amor frustrado, dor, stress e desespero. Representa uma tentativa judicial de tratar o agressor com simpatia e benevolência, e de explicar e normalizar suas ações.
São usados pelos juízes para diminuir a pena, justificativas como: “um homem de caráter exemplar”, “quando depressivas, ansiosas, pessoas podem agir irracionalmente devido ao seu estado mental”, “qualquer juiz iria tentar descobrir o que causou a mudança no comportamento deste homem”.

Mesmo que haja provas concretas, laudos psiquiátricos da vítima, exames de corpo delito para conjunção carnal e para violência, todos evidenciando a ocorrência do estupro, na grande maioria dos casos, para que ocorra a condenação e punição adequada do agressor é preciso que ele se enquadre no “estereótipo de estuprador” e que a vítima se enquadre no estereótipo de “mulher honesta”. Se estes estereótipos não estiverem presentes no caso as chances de um agressor sair impune são muito altas. O sistema de leis contra o abuso sexual age em favor da vítima, porém vemos uma repetição de julgamentos e atos judiciais que costuma culpabilizar a vítima e vitimizar o agressor.

Foi estimado, pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que apenas 10% das vítimas de estupro denunciam o crime às autoridades.  A escolha de não denunciar o estupro decorrem em grande parte do descrédito das mulheres nas instancias judiciárias e de segurança publica e por todas as demais atitudes da sociedade que em geral naturalizam a inferioridade da mulher e o uso de violência contra elas, pois ainda vigora uma moral julgadora e condenatória da mulher vitima de estupro.

Estudos e pesquisas na sociedade e análises psicossociais evidenciam que crimes de violência sexual estão diretamente ligados com questões socioculturais como a violência de gênero, a violência doméstica, a desigualdade de gênero e o alto grau de tolerância social em relação ao fenômeno da violência contra a mulher. A cultura de estupro permite que estes crimes ocorram todos os dias, permite que os agressores saiam impunes, permite que a justiça use como evidência da inocência do agressor o fato de a vítima estar usando calça jeans, permite que a vítima se sinta como a principal culpada de ter sido violentada, permite que a mulher continue sendo moralmente julgada e inferiorizada pela sociedade. 

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