Assim como na sociedade vemos
fortemente enraizada a cultura de estupro, também é possível verificar este
padrão de comportamento nas decisões judiciais. Esta cultura estando
disseminada também na justiça faz com que o tratamento legal dispensado as vítimas
de estupro seja frequentemente marcado pela discriminação, pelo uso de estereótipos
e pela desigualdade.
Em um estudo de 2002, chamado “Vítimas
e Vilãs, Monstros e Desesperados: Como o Discurso Judicial Representa os
Participantes de um Crime de Estupro”, faz-se uma análise de como a justiça
ainda é injusta quando se trata de crimes de cunho sexual. Apesar de o
estudo ter sido realizado com casos britânicos e já ter 10 anos, pode-se
verificar que ele é muito pertinente a nossa realidade judicial.
Essa lógica do nosso judiciário baseia-se
na separação de homens em duas categorias: os “normais”, incapazes de cometer
um estupro, e os “anormais” que merecem ser punidos. Do mesmo modo, separa as
mulheres entre aquelas que merecem uma proteção contra os “anormais” e as outras
mulheres que, lascivas e vingativas, se aproveitam da existência deste crime
horripilante para reivindicar direitos que não lhes cabem.
Como explica a pesquisa, é freqüente
encontrarmos as seguintes divisões em relação à vítima no sistema judicial:
A vítima genuína
Entram nessa descrição as vítimas
do estupro considerado pela justiça e pela sociedade como “padrão”: agressor
desconhecido, vítima dominada fisicamente e que não “contribui” para o ataque e
com relação sexual completa.
Também costumam entra nessa
categoria as moças virgens (a virgindade é usada como prova incontestável de
sua “boa reputação” e contribui para a credibilidade da vítima), senhoras idosas,
mulheres que resistiram fisicamente ao ataque e mulheres estupradas por
parceiros, mas que expressam o desejo de perdoá-los (como ela perdoou o
agressor é considerado que o trauma psicológico e mental deve ser menor, o que geralmente
reduz a pena do apelante).
A vítima não-genuína
Entram nessa descrição as vítimas
que tenham comportamento considerado “fora da linha” e que podem ter de alguma
forma “provocado o ataque”, geralmente qualquer detalhe da vida pessoal da vítima
é usado contra ela: se bebe álcool, se vai a bares, se tem uma maior liberdade
sexual, se anda a noite sozinha, se não é virgem, tem muitos amigos homens, se
já teve muitos empregos, etc. Qualquer comportamento que possa não enquadrar
ela como uma “mulher honesta” será apontado como a causa do estupro. Vítimas de
parceiros ou ex-parceiros também entram nessa descrição, pois há um pensamento
coletivo, de que a existência de uma relação prévia entre agressor e vítima
torna o evento menos traumático e muito mais difícil de comprovar. É importante ressaltar, porém que o estupro
cometido por um conhecido pode ser mais
traumático do que aquele cometido por um estranho, uma vez que provoca na
vítima sentimentos de quebra de confiança, culpa e rejeição.
É também muito comum encontrarmos
as seguintes descrições em relação aos acusados:
São classificados de duas formas:
os monstros e criminoso desequilibrado. Ambos são vistos como criminosos, muito
perigosos e distintos dos homens “normais”. O monstro age por “pura maldade” e
o desequilibrado age por “problemas psiquiátricos ou abuso de drogas”. Essa classificação
dos estupradores desconhecidos promove e mantêm a cultura de estupro, pois insinua
que os estupros “verdadeiros e sérios”, são cometidos apenas por homens morais
ou psicologicamente deficientes, enquanto que homens “normais” não se comportam
dessa forma.
Estupradores conhecidos
São os considerados desesperados,
que agiram dessa forma não por serem criminosos ou perigosos, mas sim por uma
mistura de amor frustrado, dor, stress e desespero. Representa uma tentativa
judicial de tratar o agressor com simpatia e benevolência, e de explicar e
normalizar suas ações.
São usados pelos juízes para
diminuir a pena, justificativas como: “um homem de caráter exemplar”, “quando
depressivas, ansiosas, pessoas podem agir irracionalmente devido ao seu estado
mental”, “qualquer juiz iria tentar descobrir o que causou a mudança no
comportamento deste homem”.
Mesmo que haja provas concretas,
laudos psiquiátricos da vítima, exames de corpo delito para conjunção carnal e
para violência, todos evidenciando a ocorrência do estupro, na grande maioria
dos casos, para que ocorra a condenação e punição adequada do agressor é
preciso que ele se enquadre no “estereótipo de estuprador” e que a vítima se
enquadre no estereótipo de “mulher honesta”. Se estes estereótipos não
estiverem presentes no caso as chances de um agressor sair impune são muito
altas. O sistema de leis contra o abuso sexual age em favor da vítima, porém
vemos uma repetição de julgamentos e atos judiciais que costuma culpabilizar a
vítima e vitimizar o agressor.
Foi estimado, pela Secretaria Especial
de Políticas para as Mulheres, que apenas 10% das vítimas de estupro denunciam
o crime às autoridades. A escolha de não
denunciar o estupro decorrem em grande parte do descrédito das mulheres nas
instancias judiciárias e de segurança publica e por todas as demais atitudes da
sociedade que em geral naturalizam a inferioridade da mulher e o uso de violência
contra elas, pois ainda vigora uma moral julgadora e condenatória da mulher
vitima de estupro.
Estudos e pesquisas na sociedade
e análises psicossociais evidenciam que crimes de violência sexual estão
diretamente ligados com questões socioculturais como a violência de gênero, a violência
doméstica, a desigualdade de gênero e o alto grau de tolerância social em relação
ao fenômeno da violência contra a mulher. A cultura de estupro permite que
estes crimes ocorram todos os dias, permite que os agressores saiam impunes,
permite que a justiça use como evidência da inocência do agressor o fato de a vítima
estar usando calça jeans, permite que a vítima se sinta como a principal
culpada de ter sido violentada, permite que a mulher continue sendo moralmente
julgada e inferiorizada pela sociedade.
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